IBAÑEZ, R.N. - Programa de Conservação Auditiva. In: NUDELMANN, A.A.; COSTA, E.A.; SELIGMAN, J.; IBAÑEZ, R.N. - PAIR Perda Auditiva Induzida pelo Ruído. Porto Alegre, Bagaggem Comunicação, 1997.
Raul Nielsen Ibañez
1. Introdução
Programa de Conservação Auditiva (PCA) é um conjunto de medidas coordenadas que têm por objetivo impedir que determinadas condições de trabalho provoquem a deterioração dos limiares auditivos em um dado grupo de trabalhadores. As medidas devem ser coordenadas porque cada uma, isoladamente, apresenta lacunas, as quais devem ser preenchidas pelas outras.
O ruído é o agente ocupacional que mais freqüentemente provoca perdas auditivas. Entretanto, outras condições não podem ser desprezadas, tais como: agentes químicos, radiações ionizantes, acidentes com traumatismo crânio-encefálico, barotraumas, alergenos (MERLUZZI, 1983). Neste capítulo é enfocado o programa destinado a prevenir as perdas auditivas induzidas pelo ruído. Este tipo de programa tem a vantagem adicional de prevenir também grande parte dos outros efeitos do ruído que não aqueles ocasionados nas vias auditivas.
O PCA envolve a atuação de uma equipe multiprofissional, pois são necessárias medidas de engenharia, medicina, fonoaudiologia, treinamento e administração. Não se pode conceber a efetiva prevenção aos efeitos do ruído sem a redução dos níveis de pressão sonora encontrados nos ambientes de trabalho. Conhecimentos atualizados de acústica devem estar disponíveis para que sejam adotadas medidas técnica e economicamente viáveis no tratamento das principais fontes de ruído que estejam causando lesões auditivas (GERGES, 1982).
O reconhecimento dessas fontes de ruído é realizado de duas maneiras: avaliação instrumental do ambiente de trabalho e da exposição dos indivíduos, e análise dos exames audiométricos dos trabalhadores expostos. Audiometrias confiáveis são fundamentais para o estabelecimento da etiologia e do caráter evolutivo das perdas auditivas detectadas e a conseqüente tomada de decisões sobre as prioridades e a eficácia do programa (IBAÑEZ, 1992). Algumas decisões importantes são de caráter administrativo, geralmente envolvendo redução do tempo de exposição ao ruído. Entretanto, é sabido que a adesão de todas as pessoas envolvidas no programa, desde os mais altos escalões gerenciais até os trabalhadores expostos, só é alcançada por intermédio de treinamento técnico e motivacional repetido.
2. Ambientes ruidosos e exposição
Décadas de desenvolvimento com pouca valorização do ser humano envolvidos nos processos produtivos resultaram na situação existente no Brasil atual, com ambientes de trabalho nocivos à saúde (COSTA, 1989). O ruído não foge a esta regra. Mesmo com a crescente preocupação manifestada nos últimos anos pelos diferentes segmentos sociais envolvidos com o problema, constituem exceção as medidas implantadas que efetivamente modificaram a qualidade dos postos de trabalho.
Qualquer posto de trabalho com níveis de ruído iguais ou superiores a 85 decibéis, medidos com o circuito de compensação "A" do decibelímetro, pode ser considerado potencialmente patogênico, independente do tempo de exposição do trabalhador (WHO, 1980). A existência de locais com estas características deve desencadear a implantação de um PCA, a menos que nenhuma pessoa esteja exposta.
A multiplicidade de situações emissoras de ruído torna complexa e onerosa a tarefa de reverter a situação. Freqüentemente, se faz necessária a atuação de técnicos com apurados conhecimentos de acústica na elaboração de projetos que solucionem os problemas encontrados. Não se deve ser desprezado o fato de que o custo de tais medidas, aparentemente elevados, pode até ser menos que o custo da manutenção a longo prazo de trabalhadores em ambientes ruidosos, com protetores individuais, exames audiométricos, consultas médicas e treinamento, sem contar a possibilidade de indenizações pleiteadas na justiça (GERGES, 1992).
Um aspecto importante a ser considerado é a real exposição do trabalhador ao ruído medido. Nem sempre o local de maior nível de pressão sonora é o ambiente que está produzindo o maior número de lesões auditivas (IBAÑEZ, 1992). Faz-se necessária uma detalhada integração entre três informações: os níveis de pressão sonora medidos nos postos de trabalho, o resultado da audiodosimetria do trabalhador exposto e os achados de seus exames audiométricos.
Um excelente trabalho de engenharia, representado em decibéis reduzidos, pode trazer pouca ou nenhuma repercussão na audiodosimetria e nas audiometrias do trabalhador se a fonte de ruído atacada não for o principal local produtor de lesões. Mesmo as audiodosimetrias devem ser interpretadas com cuidado, pois desconsideram a susceptibilidade individual ao ruído e o uso de equipamento de proteção auditiva.
3. Controle médico
A atuação dos técnicos da área médica, como médicos do trabalho, otorrinolaringologistas, fonoaudiólogos e enfermeiros, se faz em três níveis: monitoração dos limiares auditivos, diagnóstico etiológico, das perdas auditivas e educação individual e coletiva dos trabalhadores expostos.
Um fonoaudiólogo tem papel fundamental neste processo, não só por realizar o exame audiométrico, que em última análise informa sobre a eficácia do programa, mas também por ser uma das poucas pessoas que têm contato individual e demorado com o trabalhador em um momento no qual o ruído é o assunto prioritário. O momento do exame é a hora ideal para, independentemente de seu resultado, efetuarem-se esclarecimentos sobre os efeitos do ruído e as formas de prevenção, principalmente quanto ao uso dos protetores individuais (NIOSH, 1990). È também do fonoaudiólogo a tarefa de garantir qualidade e confiabilidade ao exame audiométrico, indispensáveis no reconhecimento da real magnitude do problema e da valorização de pequenas progressões de perda dos limiares auditivos.
Uma consulta médica que tenho o objetivo de estabelecer o diagnóstico etiológico da perda auditiva detectada, ou de informar o resultado do exame, pode vir a ser fator desencadeante de adesão ao programa por parte de um trabalhador até então pouco motivado para tal. a comunicação do resultado deve ser feita por pessoal preparado, e não apenas por escrito, num ato meramente burocrático.
4. Treinamento, informação e educação
Essas medidas são tão importantes quanto as demais do programa. O treinamento deve ser meticulosamente planejado, de forma a estender-se a todos os níveis da organização, abrangendo os conteúdos necessários a cada instância. Os trabalhadores devem ser informados, anualmente e de forma coletiva, sobre os seguintes aspectos: resultados atualizados das avaliações ambientais realizadas, efeitos do ruído no organismo humano, medidas adotadas pelo PCA e formas de proteção. Em termos ideais, as instruções sobre o uso de protetores individuais não deveriam ser dadas a grupos de mais de cinco trabalhadores. E precisam ser renovadas anualmente e sempre que for detectada alguma evolução na perda dos limiares auditivos atribuível ao ruído.
A divulgação de vídeos, folhetos, manuais, cartazes e frases é útil quando perfeitamente integrada ao programa. Funcionários da organização que exerçam cargos de chefia, além de receberem o mesmo treinamento dos trabalhadores menos graduados, devem ser encorajados a participar e a exigir o perfeito funcionamento de todas as atividades do programa. Já os funcionários e prestadores de serviço com funções específicas dentro do programa devem ser estimulados a manterem-se tecnicamente atualizados.
5. Medidas administrativas
Podem ser consideradas administrativas todas as atividades de planejamento e avaliação do programa. Entretanto, representam efetivas medidas administrativas aquelas que redundam em diminuição da exposição dos trabalhadores, através da redução da jornada de trabalho, introdução de mais um grupo para o revezamento dos turnos de trabalho, deslocamento de atividades ruidosas para horários de menor presença de pessoal, acesso a áreas ruidosas dentro do estritamente necessário. A adoção de tais medidas só é possível quando o programa conta com o apoio efetivo das instâncias decisórias superiores e dos gerentes das áreas produtivas da organização.
6. Avaliação do PCA
O diagnóstico etiológico das perdas auditivas detectadas e seu caráter evolutivo fornecem informações que nem sempre são adequadamente valorizadas. Uma análise detalhada, agrupando os resultados por setores, por funções ou por grupos homogêneos de exposição, fornece instrumentos para diversas decisões dentro do programa: áreas prioritárias para a intervenção ambiental, trabalhadores que merecem atenção educacional mais pormenorizada, eficácia das medidas adotadas.
Para se obter essas informações é necessário classificar os resultados dos exames e adotar um critério de análise evolutiva. Este critério pode ser desenvolvido de forma personalizada pelos técnicos da organização, ou pode ser escolhido entre os disponíveis na literatura. O Comitê Nacional de Ruído e Conservação Auditiva sugere que, na comparação ao exame de referência, considere-se mudança significativa dos limiares auditivos o critério recomendado pela SBO em 1993. Ou seja, diferença entre as médias aritméticas que atingem 10 dB, ou mais, no grupo de freqüências de 500 Hz, 1000 Hz e 2000 Hz, ou no grupo de 3000 Hz, 4000Hz e 6000 Hz. As pioras em freqüências isoladas só serão consideradas significativas se atingirem 15 dB ou mais. Está se difundindo internacionalmente a proposta do Working Group S12 do American National Standard Institute (ANSI), o qual recomendou o publicação do DANS ANSI S12.13-1991, que consiste em um critério simplificado de avaliação da eficácia dos PCAs. Em resumo, é proposto que se estabeleça o percentual anual de trabalhadores de uma organização que apresentaram pioras audiométricas de pelo menos 15 decibéis em no mínimo uma das freqüências de 500 Hz a 6000 Hz, em qualquer dos ouvidos. Se este percentual for menor do que 5 %, o programa é considerado aceitável (PEREIRA, 1989; COSTA, 1988; OSHA, 1983; MELNICK, 1984; COMITÊ NACIONAL DE RUÍDO E CONSERVAÇÃO AUDITIVA, 1995; ADERA, 1993).
Assim, fica evidente que o resultado das avaliações audiométricas é soberano sobre qualquer outra avaliação quando se deseja conhecer a eficácia de um PCA. Reduções de ruído nos postos de trabalho e reduções de doses de exposição ao ruído servem para explicar os bons resultados audiométricos encontrados, mas não podem ser utilizados como indicadores confiáveis de eficácia.
7. Considerações finais
Os Programas de Conservação Auditiva são coordenados ora por profissionais da área médica, ora por profissionais de engenharia. Infelizmente, nem sempre ocorre entre esses profissionais o necessário intercâmbio de informações adequado ao sucesso do programa. A simples adoção das diferentes medidas não garante sua eficácia. Além disso, o fluxo de informações deve ser multidirecional. A ausência de uma medida, por mais simples que seja, pode comprometer os resultados. Por exemplo: se não é adotado um instrumento ambiental ou audiométrico de avaliação do funcionamento do programa , como planejar as ações futuras? Se não são implantadas atividades de treinamento e educação, como esperar que os protetores individuais forneçam atenuação pelo menos razoável? Se os exames audiométricos não são sensíveis, confiáveis e meticulosamente interpretados, como avaliar a eficácia das medidas? A interdependência das atividades implantadas é real. Sua correta valorização define o sucesso ou o fracasso do programa.
8. Resumo das atividades do Programa de Conservação Auditiva
a) Atividades de Monitoração:
- avaliação ambiental do ruído
- audiodosimetria
- audiometria
b) Atividades de Controle:
- redução do ruído ambiental
- redução da dose de exposição ao ruído
- equipamentos de proteção individual
c) Atividades de Apoio:
- medidas administrativas
- educação e informação
- avaliação
9. Referências Bibliográficas
1. ADERA, T. et al. - Assessment of the Proposed Draft American National Standard Method for Evaluating the Effectiveness of Hearing Conservation Programs. Journal of Occupational Medicine. 35(6):568-73, 1993.
2. COMITÊ NACIONAL DO RUÍDO E CONSERVAÇÃO AUDITIVA. Boletim n° 2 - Padronização da Avaliação Audiológica do Trabalhador Exposto ao Ruído. Belo Horizonte, 1995.
3. COSTA, D.F. et al. - Programa de Saúde dos Trabalhadores. São Paulo, HUCITEC, 1989. p.83-155.
4. COSTA, E.A. - Classificação e Quantificação das Perdas Auditivas em Audiometrias Industriais. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, 16(61):35-8, 1988.
5. GERGES, S.N.Y. - Ruído: Fundamentos e Controle. Florianópolis, Imprensa Universitária da Universidade Federal de Santa Catarina, 1992. 600p.
6. IBAÑEZ, R.N. et al. - Diferenças das Perdas Auditivas Induzidas pelo Ruído de Trabalhadores de Atividades Distintas em uma mesma Indústria Petroquímica. Revista de Acústica e Vibrações, 10:2-6, 1992.
7. IBAÑEZ, R.N. et al. - Validação Diagnóstica de Audiometrias Industriais. Revista de Acústica e Vibrações, 10:7-11, 1992.
8. MELNICK, W. - Evaluation of industrial hearing conservation programs: A review and analysis. American Indrustrial Hygiene Association Journal. 45(7): 459-67, 1984.
9. MERLUZZI, F. - Occupational Deafness. In: INTERNATIONAL LABOUR OFFICE - Encyclopaedia of Occupational Health and Safety. Geneve, ILO, 1983. 1245-7.
10. NATIONAL INSTITUTE FOR OCCUPATIONAL SAFETY AND HEALTH - A practical guide to effective hearing conservation programs in the workplace. Cincinnati, U.S. Government Printing Office, 1990. 56p.
11. OCCUPATIONAL SAFETY AND HEALTH ADMINISTRATION - 29 CFR 1910.95 - Occupational Noise Exposure. Washington, U.S. Department of Labour, 1983.
12. PEREIRA, C.A. - Surdez profissional: caracterização e encaminhamento. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, 17(65):43-5, 1989.
13. WORLD HEALTH ORGANIZATION - Environmental Health Criteria n° 12 - Noise. Genebra, WHO, 1980. 103p.